Crítica de Minha alma é nada depois dessa história por Leonardo Simões

Minha alma é nada depois desta história.
Análise crítica: Leonardo Simões


Esquete nº 08 do dia 21/12/2009 – segunda-feira
Título: Minha alma é nada depois dessa história
Autor e diretor: Ribamar Ribeiro (a partir do conto de Gero Camilo)
Responsável ou Grupo: Ribamar Ribeiro / Os Ciclomáticos Companhia de Teatro
Interpretação: Júlio César Ferreira; Carla Meirelles; Fabíola Rodrigues; Juliana Santos; Nívea Nascimento; e Fernanda Dias.


a) Relação entre a proposta apresentada na ficha de inscrição e o que foi apresentado em cena:
A ficha de inscrição deste esquete traz uma minuciosa descrição dos procedimentos utilizados na cena, com suas respectivas referências e a proposta da concepção, que reflete uma experimentação continuada do grupo. A ênfase nesse aspecto de um trabalho consecutivo d'Os Ciclomáticos fica evidente pela inserção do histórico da companhia, e dos muitos prêmios já conquistados, nos itens que se referem à sinopse e à encenação, além do próprio currículo incluído ao fim da ficha.
Também pode-se ver em cena a densidade conceitual e formal desse trabalho contínuo. As referências que embasam o resultado são visíveis, assim como a clareza na manipulação das mesmas, por parte da encenação, na busca de um resultado cênico de efeito e de afirmação de uma identidade.

b) Questões acerca da dramaturgia:
O texto se beneficia muito pelo correto enquadramento cênico, com ênfase num elemento narrativo devidamente digerido pela teatralidade, através de vários recursos bem orquestrados. A contraposição de dois tempos, tipicamente literária e já expressa poeticamente no título (minha alma “é nada” - “depois” dessa história), encontrou boa realização em cena tanto pela compreensão do encenador quanto pela expressão do ator principal (Júlio César Ferreira) sobre quem recai a principal responsabilidade narrativa no aspecto verbal. Nesse sentido, o texto se torna um elemento eminentemente teatral, graças a sua apropriação, de forma independente da fonte literária, porque assimila e interage com outros elementos da cena que lhe completam de forma integrada.
Este parece ser o exemplo de uma dramaturgia conquistada através do próprio exercício da cena, não exatamente a experimentação de uma dramaturgia do ator, mas talvez do encenador (a ficha traz a referência ao termo “dramaturgia cênica”). Embora o diretor (Ribamar Ribeiro) seja citado, na ficha, como autor da adaptação feita sobre o conto, percebe-se pelo resultado que essa adaptação se baseou muito mais numa re-escrita cênica do que numa transformação literária. Esse é um processo consonante com uma relação contemporânea entre o texto e a cena teatral.

c) Quanto à interpretação:
O elenco é extremamente afinado e domina bem os diversos recursos técnicos nos quais a encenação se baseia: voz; ritmo; movimentação corporal, unindo gestualidade sutil e atributos de dança (especificamente a dança flamenca). A propósito desse domínio técnico do flamenco, não só nos momentos de dança quanto no gestual e nas atitudes em geral, pareceu-me, por vezes, tratar-se de um grupo de aprendizes de dança flamenca que estavam sendo dirigidos para atuar no teatro. A leitura posterior do histórico do grupo, entretanto, revelou tratar-se do contrário: o elenco se utiliza da dança como forma de treinamento associado à linguagem estabelecida.

A referência à cultura flamenca, exageradamente dramática por essência, justifica a primeira impressão que se tem de uma interpretação um tanto “cafona” (sobretudo do ator principal) seja na intencionalidade como na oralidade. Essa característica, entretanto, é enquadrada no todo da cena, por evidenciar pleno domínio de seus efeitos e por se estabelecer como uma linguagem, na qual todos estão intensamente mergulhados.
Assim como na dança, o uso do tempo-ritmo é bem realizado pelos atores. Há, também, um foco constante do elenco na relação com o público, reforçando o caráter narrativo da cena: o que é falado, as ações e as intenções. Apesar da marcada orquestração das atrizes em suas ações integradas, cada uma explora bem as suas partituras individuais, imprimindo-lhes um temperamento próprio e, assim, enriquecem a personagem, conferindo-lhe veracidade.

d) Sobre outros recursos expressivos utilizados:

Dentro do universo sobre a qual a cena se estabelece, a inserção das músicas flamencas é bastante eficaz. Essas músicas parecem se justificar não só para criar o clima do que é narrado mas também para atingir objetivos claros de impacto junto ao público.
O espaço cênico tem um tratamento quase coreográfico, mas não perde sua teatralidade no sentido mais específico, graças à eficiência com que é explorado. Os elementos de figurinos e objetos conferem unidade à cena, todos remetendo a um campo estético predominante: o cajón, instrumento musical usado de forma dramática; as saias e os sapatos (ambos típicos do sapateado flamenco). Aliás, os sapatos são o principal elemento associado à figura de Cleide, mulher pela qual o ator-narrador se apaixona; o momento final do esquete garante um eficiente arremate, quando Cleide (multiplicada pelas quatro atrizes) deixa seus sapatos no palco, em torno do ator solitário cuja alma se esvazia.

e) Sobre a linguagem cênica e as referências utilizadas:

Já foram comentadas as referências à dança flamenca, através dos figurinos, da gestualidade e da sonoridade (tanto pelas músicas e ritmos quanto pela expressão oral). A seleção desses elementos (há uma grande gama de itens desse universo que não foram utilizados) evidencia um premeditado controle entre o que pertence ao campo estético escolhido e o que serve à cena que se pretendeu construir. Nessa fronteira entre o teatro e a dança, o esquete se compôs praticamente de quadros (análogos às unidades que compõem sucessivamente uma coreografia). A associação entre os elementos do narrativo e da dança (também há uma citação da técnica de Pina Bausch) constrói uma linguagem que alimenta a busca da companhia, levando seus criadores a um empenho formal que se expressa na cena. Manipulada de modo seguro pelo encenador (Ribamar Ribeiro), a experiência da fusão entre palavra, teatro e dança, sustenta e define o trabalho dos atores.

f) Comunicação cênica:

A entusiasmada reação do público correspondeu à condução do encenador, que soube utilizar e realçar cada elemento expressivo, movido pelo objetivo de causar impacto ao “contar” a história dessa desilusão amorosa. Percebe-se que todos os elementos, desde o enquadramento do texto até o foco dos atores, visavam muito mais construir essa comunicação direta com o público, opção correta pelo aspecto narrativo, do que instaurar um outro clima de realidade orgânica da cena.

g) Comentários gerais:

Parece visível que essa cena foi criada para servir de “cartão-de-visita” d'Os Ciclomáticos. Nesse sentido, a busca de eficiência teatral do esquete como um fragmento se sobrepôs a uma construção mais orgânica. Entretanto, a experiência do grupo e do encenador, com o trabalho continuado que precede a esse esquete, garantiram a qualidade do mesmo.

P.s.: Quero enfatizar que todas as observações aqui registradas já estavam apontadas ao fim do primeiro dia do Festival; e mesmo a redação final dessa crítica ocorreu de modo totalmente alheio ao fato desse esquete ter sido premiado pelo Júri em várias categorias e também como um dos três melhores do 2º Festival de Esquetes de Niterói.

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