Casa Grande e Senzala - Manifesto Musical Brasileiro na visão do ator Marcelo Aquino

Casa Grande Senzala
Emoção, suor e músculos!
Rito da afirmação de pertencimento.



Somos brasileiros!
Gostamos de dizer isso, de afirmar com orgulho. Mas há quanto tempo somos efetivamente brasileiros? Este conceito de brasilidade que nasce da mistura, do sincretismo, do cruzamento de raças e culturas. Desde quando começamos a pertencer de verdade, já que o Brasil de dimensões continentais de hoje, é o resultado de um ousado modelo colonizador que durante séculos só se deteve em extrair, catequizar, povoar, dizimar, explorar e tantos outros verbos nos quais somos forjados? O Pindorama dos índios se tornou fortemente Português por razões óbvias depois da invasão que a maioria ainda chama de descoberta. Também era um pouco espanhol, pois os interesses reais uniram as duas coroas numa intrincada rede de interesses, e neste ínterim os índios catequizados também iam fundindo seus tupis guaranis aos sotaques europeus, tendo que esculpir e adorar divindades de madeira das quais nunca tinham tomado conhecimento na vida, em troca de uma alma, de um caco de espelho ou de um garrafa de cachaça. Índios que sob o olhar atento dos colonizadores, eram considerados completamente indolentes e inaptos para o trabalho braçal, possibilitaram de forma trágica, que naus atravessassem o oceano vindas da áfrica, trazendo homens, mulheres e crianças que se tornariam o braço forte na nação que se erguia. Então, inevitavelmente e de uma forma genocida, o Brasil começava a ficar negro também. Este tráfico bárbaro de gente perdurou por muito tempo. Foi inclusive o Brasil o último recanto do mundo a reconhecer a atrocidade que estava cometendo e abolir a escravidão. Mas os escravos negros precisavam ser substituídos; então vieram os escravos brancos e amarelos. Por causa de uma forte crise econômica e por uma histórica escassez de alimentos, hordas de imigrantes alemães, italianos, holandeses, japoneses e de muitas outras partes da Europa e da Ásia vinham buscar abrigo no novo mundo. Podemos imaginar, então, a Babilônia que se tornou a terra brasílis.

Sem querer desenvolver um tratado sociológico sobre a fundação da nação brasileira, vou direto ao início do século XX, pois neste período um brasileiro chamado Monteiro Lobato inicia um movimento de afirmação de uma verdadeira identidade Nacional. Lobato com seu Jeca Tatu, seus Sacis, Cucas e Caiporas, dá início a um mergulho vertiginoso no caldeirão Brasil. Antropofagicamente quer que nos reconheçamos como Brasileiros. Propõe que deixemos de simplesmente “estar” e passemos a definitivamente “pertencer”.
Se formos considerar isto numa escala de tempo, vamos perceber que o nosso conceito de brasilidade é muito recente. O ser brasileiro hoje tem selo de qualidade: é o carnaval, é o futebol, é caipirinha, é a feijoada é a mulata, é o samba. Elementos que em qualquer parte do mundo são a afirmação de nossa alteridade, elementos que tem sua origem muito longe daqui, mas que com o passar do tempo ganharam o Jeitinho e o tempero dos trópicos.

Passados estes 500 anos que a história oficial usa como marco cronológico, e também considerando todos os outros séculos que o antecedem, vamos perceber que ainda estamos vivendo um processo de afirmação de nossos valores, de nossas raízes e tradições. O momento otimista que vive o Brasil hoje, de crescimento e reconhecimento em vários cenários, faz brotar um sentimento ufanista que considero muito significativo. Há algumas décadas, a perspectiva de todo o jovem brasileiro era mudar para Europa em busca de melhores oportunidades. Hoje estamos vivendo exatamente o movimento contrário, vendo o Brasil se tornar o país das oportunidades, da alternativa frente à crise estrutural que derruba economias e impérios nos quatro cantos do planeta. A desigualdade social, a violência, a corrupção e a nossa falta de estrutura são ainda o resultado de nossa incapacidade de pertencer, de cuidar e de proteger. Sou otimista sempre, mas considero que ainda precisamos avançar muito culturalmente e intelectualmente rumo ao nosso futuro. Quando digo culturalmente, me refiro a todos aqueles elementos que compõem os nossos valores, nossa ética, nossa responsabilidade e nosso comprometimento.

Desde muito cedo escolhi ser artista por um certo deslumbramento com a profissão, e só muito tempo depois percebi que minha escolha implicava em algo muito mais significativo. Implicava em um comprometimento com a arte como importante elemento de transformação social. Descobri que como artista poderia contribuir com as ideias de Monteiro Lobato, que povoou minha infância com personagens de um Brasil mágico, fascinante, e que poderia também ajudar a propagar este Brasil, e desta forma, colaborar com a construção de uma verdadeira identidade nacional, sobretudo em um mundo sem fronteiras, globalizado e conectado vinte e quatro horas.

É lindo ver que arte não perde esta função e é emocionante ver artistas engajados justamente neste movimento, orgulhosos, comprometidos, cientes de sua responsabilidade e de forma inteligente e sensata, conectados com o seu tempo, presentes no aqui e agora.



Tive uma linda experiência artística neste final de semana, que pode sintetizar todo este discurso acima sobre afirmação de uma identidade brasileira. Uma deliciosa, subversiva e antropofágica, carnavalização cênicomusical, que se utiliza de forma completamente anárquica e fragmentada da obra de Gilberto Freyre “Casa Grande Senzala”, para nos convidar a olharmos para nós mesmos através de uma poderosa lente que desfoca, deforma, dilata, nos mastiga e nos cospe de volta. Somente uma companhia com 17 anos de trabalho como “Os Ciclomáticos” consegue reunir não só experiência, mas coragem suficiente para encarar esta empreitada, pois a tarefa de transformar em ação cênica uma densa obra literária já é titânica considerando que Casa Grande Senzala é um romance com mais de 500 páginas. Mas, de forma abusada eles vão além. Resolvem fragmentar e alterar a cronologia da narrativa, contando a história aos pedaços sem nenhum comprometimento com a ordem lógica. E tem mais! Imaginem tudo isso transformado em um espetáculo onde os atores cantam, dançam e executam sofisticadas partituras corporais e sonoras. Não dá para classificar em algum gênero o que os Ciclomáticos fazem com esta proposta. Por alguns momentos parece que é uma revista, pela forma de apresentação dos quadros que mesclam números musicais e pequenas cenas com muitas trocas de figurinos. Mas em seguida somos surpreendidos por uma outra proposta de narrativa que rompe drasticamente com tudo, e nos transportando para dentro de um musical que, em seguida se transforma em numa proposta contemporânea de Dança teatro. Enfim, esta ousadia e este caldeirão de referências é que torna extremamente original o trabalho do grupo em termos de linguagem, e isso reafirma o que penso sobre a importância do trabalho continuado de grupo, sobre a pesquisa séria que resulta também em uma identidade artística.



Outro ponto que é resultante de tudo isso é a afinação do elenco. Fica muito difícil destacar uma ou outra atuação em um trabalho que é genuinamente de grupo. Percebe-se a intimidade, a cumplicidade entre os interpretes a ponto de você ignorar completamente pequenos deslizes, ou com o texto ou com a marcação que possa acontecer com um ou outro, porque o que está acontecendo no coletivo é tão mais interessante que o resto não importa.



Me encanta muito quando vejo o suor, o músculo do ator em ação. É a medida do comprometimento com a verdade, com a defesa do discurso na cena. Estão todos muito bem preparados para o desafio. Se um ou outro canta com mais potência ou é mais afinado, ou se a disposição física de um ator é maior que de outro, o que se vê como resultado final é uma inteligente equalização; como se um complementasse outro. Isso é resultado do trabalho delicado e inteligente de uma equipe de preparadores corporais e também da direção, que se percebe muito presente o tempo todo. A presença do diretor é muito forte e ás vezes até impositiva, no rigor das marcas, nos desenhos da topografia cênica, o que poderia se transformar em um problema não fosse a generosidade com que Ribamar Ribeiro rege esta esquizofrênica orquestra. Ribamar, que é responsável também pelo roteiro, mostra um olhar sofisticado sobre a obra de Gilberto Freyre: o olhar de quem há muito tempo já vem enfrentando o autor; Sim, pois um autor para ser encenado precisa ser enfrentado, e ele o faz com maestria quando questiona o posicionamento de Gilberto na cena, quando tira suas páginas da ordem cronológica, quando rasga e até reescreve o livro.



Incorporados a todos estes elementos, temos um figurino super funcional e muito bem acabado que auxilia a narrativa com suas formas, texturas, sobreposições e cores. Uma iluminação que apesar dos poucos recursos do teatro consegue ambientar e criar climas. Um cenário que no início causa estranhamento, mas no final surpreende e se torna essencial para a proposta, além uma trilha sonora primorosa, muito bem escolhida e que mistura várias referências e gêneros executada com muita competência pelo elenco, ao vivo, na cena, por vezes utilizando uma base em playback e outras com instrumentos sendo tocados pelos atores. Casa Grande Senzala, em cartaz no teatro Ziembinski na Tijuca, é o resultado de uma ousada proposta cênica que mistura, mastiga, macera e regurgita. O quadro final é a apoteose, a nossa redenção como espectadores e de certa forma um convite para cair na avenida das diferenças, dos contrastes, das contradições, das mazelas e alegrias que nos forjam como nação.
Obrigado Ciclomáticos!
Evoé!
Saravá!
Axé!
Marcelo Aquino
Ator/Diretor

Comentários

Unknown disse…
Parabéns pela peça. Estou recomendado ao meus amigos.Uma nova visão do livro.
Unknown disse…
Parabéns pela peça Casa Grande Senzala.Recomendado para os amigos
Unknown disse…
Maravilhoso o musical!!! Já fui duas vezes e na segunda acompanhei a trilha sonora como num desfile de es ola de samba!!!
Pediria , se fosse possível gravar esse musical e vender o cd, eu adoraria...

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